Projeto I - Infrit: O que são?

- Infrit? - perguntou o garoto, agora mais calmo a observar os pássaros ao longe. - O que significa?
- Significa o que somos. A nossa herança, aquilo que nos define no mundo.
- É francês?

O homem esboçou um sorriso e tragou profundamente seu cigarro. Estava sentado na mesma pedra que o garoto havia estado na noite anterior. Respirou fundo. Aquela seria uma longa manhã, preenchida por perguntas e explicações.

- Não, não é francês, garoto. - ele respirou fundo e deu outra tragada no cigarro. Havia muito tempo que não repetia aquela história para ninguém. Talvez tivesse perdido o jeito, mas estava certo de que não esquecera de nenhum detalhe. - E nem italiano, nem alemão. E nenhuma outra língua que você já tenha ouvido falar, antes que você me pergunte.
- Nem aramaico?
- Nem aram... Porra, garoto! Você não ta prestando atenção? Não é NADA que você já tenha escutado ou ouvido falar. E ao mesmo tempo, fez parte de tudo isso. - outra tragada.
- Agora você está me confundindo...
- Como se a sua cabeça e raciocínio de humano já não fossem confusos o suficientes, não é mesmo?

Ele se levantou da pedra e pegou um pedaço de graveto jogado no chão.
- Agora preste atenção que essa é uma história longa por demais, e você não vai me ouvir repetindo-a muitas vezes.
Começou a rabiscar um círculo na areia. Soprou a fumaça no chão, e o garoto teve a impressão de que o círculo estava girando.
- Como sua mente ainda é muito jovem e pouco desenvolvida, vou tentar explicar isso da forma mais simplificada possível. A muitos e muitos milênios atrás, antes mesmo da primeira forma de escrita ter sido inventada... Oras! Antes mesmo do primeiro ser humano ter rompido a barreira da consciência e deixado de ser um reles animal para se tornar um ser pensante... Antes disso tudo, já existiam os Infrit. - ele apontou para o chão e, dessa vez o garoto achou ter visto várias cores brilhando dentro do círculo - Apesar de viverem em outra realidade, outra dimensão, você vai entender melhor se eu simplesmente explicar que os Infrit viviam em outro planeta.
- Eu sou um E.T.?
- O planeta é uma metáfora, garoto! Os Infrit viviam em um plano de existência que os níveis de consciência dos seres humanos ainda não conseguem imaginar, sequer compreender. E lá eles viviam suas vidas de forma organizada, fazendo seja lá o que eles faziam com suas vidas organizadas. - ele fechou os olhos e inspirou profundamente o ar calmo da manhã. Parou por uns segundos, como se puxasse do fundo da memória lembranças prazerosas, mas à muito esquecidas, ou guardadas.

- Eram seres avançados no uso da magia e suas almas haviam se elevado no mais alto grau de consciência e libertação...
- Eu sempre achei que seres evoluídos utilizassem de tecnologia. Nunca acreditei em magia.
- Não seja tão cético, garoto. A tecnologia é um invento humano. Vocês a inventaram pq não possuem o grau evolutivo de interagir, ou mesmo reconhecer a magia. E os Infrit não a desenvolveram porque não precisavam. Eles possuiam a magia, que os servia tão bem, ou até melhor do que a sua tecnologia...

O garoto observou o desenho no chão novamente, e pôde ver que o círculo apresentava uma semelhança com o planeta Terra.
- E então os humanos apareceram, e os Infrit acharam melhor manter vigia sobre aquelas novas criaturas. E fizeram bem, pois logo eles evoluíram ao nível da consciência, e começaram a construir coisas e a desenvolver idéias. E foi então que eles acharam que deveriam acomopanhar os humanos mais de perto...
- Eles vieram pra Terra?
- Não só vieram, mas ajudaram os humanos a se desenvolverem melhor, e a criarem muito do que existe hoje em dia...
- As pirâmides?
- Não só elas, mas muitas teorias e conceitos que hoje compõem a sociedade humana. A matemática e a ciência são exemplos disso. Mas a política foi invenção puramente humana, que fique bem claro!

O garoto refletiou. Isso mudava muita coisa no mundo, mas ainda não o impactava diretamente.
- E onde eu entro nisso tudo?
- Bem, você pode imaginar que em todos esses anos de convivência, alguns Infrit e humanos geraram filhos. O corpo terreno de um Infrit sofre muitas limitações, mas a geração de descendentes não é uam delas. Você, e eu também, somos resultado dessa mistura.
- Você está dizendo que um dos meus pais... era um Infrit?
O homem desenhou uma linha no chão. E o garoto viu como aquela linha representava o passar de milhões de anos.
- Não, garoto. Seus pais eram humanos normais, e um Infrit não caminha mais pelo solo terrestre à muitos séculos. O que nós somos, é descendentes dos filhos daqueles primeiros Infrit que vieram à Terra. E o que nos difere é o quão diluído está o sangue Infrit em nosso corpo humano. Por exemplo, eu sei que meu sangue é composto de uns 20% Infrit, mas o seu ainda é um mistério. Mas não deve ser mais do que o meu, do contrário meus poderes não teriam sido o suficiente para te dispertar.
- Poderes?

O Sol já estava alto, carregando consigo um ar mais abafado do que a brisa do amanhecer. O homem de terno olhou ao redor, e se levantou.
- Vamos caminhar, garoto. - acendera mais um cigarro, e dessa vez o garoto pôde ver que ele utilizara somente os dedos para isso - Já ficamos parados por muito tempo nesse local.
- E para onde vamos?
- Bom, você precisa de roupas novas, - apontou para as calças do pijama suado e sujo que o garoto usava - e essa história ainda está longe de acabar. Você ainda precisa aprender muito.

16 fevereiro, 2008

Projeto I - Aquele do nascer da Criatura...

Pára. Pára! Eu preciso de ar. Inspira... Expira...

Dor!

Meus pés já estão inchados e minhas pernas parecem que vão se quebrar, resultado das quase 3 horas de corrida. O coração no peito está a ponto de explodir, e cada vez que eu respiro, o ar entra queimando todos os meus órgão internos.

Durante essas 3 horas de corrida, nem por um momento eu parei pra pensar no que estava acontecendo. Teria sido real, ou só mais um sonho maluco? Ultimamente tenho tido muitos desses sonhos. Pessoas olham para mim apavoradas, e sou perseguido por uma criatura que eu nunca vejo. Eu so sinto como se um sentimento de raiva estivesse atrás de mim. E isso me alimenta uma fúria que não me é característica... E todos acabam da mesma forma: o maldito sangue...
Eu nunca fui um cara chegado em violência. Fiz karatê alguns anos, mas era mais por toda a filosofia de auto-defesa do que qualquer outra coisa. E não posso dizer que eu era exatamente um bom aluno... Não aprendi mais do que uma ou duas coisas, e nunca passei da faixa amarela. Uma vergonha para o currículo do professor e da escola, com certeza.
Mas ultimamente esses sonhos têm me acordado no meio da noite. Cada vez mais assustador, cada vez mais real. Já tinha me acostumado à sentir um gosto de sangue na boca, sempre acordava suado. Devia estar mordendo os lábios durante o sono, ou algo assim...

Mas hoje foi diferente. Não era sonho. Não poderia ser. Não com todos aqueles gritos e barulhos.

Estava acampando com alguns amigos. Os nomes não importam mais, estão todos mortos... Eu não pude ver seus corpos, estava em estado de choque! Mas vi o sangue. A mesma cor e cheiro dos meus sonhos.
Eu não acordei de início. Achei que os gritos eram fruto do meu sonho, como das outras centenas de vezes. Foi quando que percebi que não estava dormindo. Estava escuro, só uma lamparina elétrica iluminando dentro da barraca. Eu estava sozinho, e comecei a imaginar que fosse alguma brincadeira de mau gosto dos meus amigos. Antes fosse!
Peguei uma lanterna na mochila e sai pra ver o que estava acontecendo. Nessa hora os gritos haviam cessado. Pararam de fazer barulho logo que eu acordei... Ou melhor: quando eu me dei conta que não estava dormindo mais.

Nós escolhemos um descampado no alto de um morro para montar as barracas. Como fazia muito calor, o vento providenciaria um frescor à mais durante a noite. Somente 3 árvores restavam no topo do morro, parecendo até que haviam-nas deixado ali de propósito. As mesmas 3 árvores que agoram tinham seus troncos todo coberto de vermelho.
Meu cérebro não demorou muito pra raciocinar aquilo como sangue, principalmente com todos aqueles sonhos que eu estava tendo, foi muito fácil identificar o cheiro metálico no ar. No chão, algumas peças de roupas rasgadas e manchadas. As mesmas roupas que meus amigos vestiram na noite anterior para irem dormir, dentro da barraca.

Antes que eu pudesse expressão qualquer reação, eu a senti se aproximando. O mesmo sentimento de raiva que me perseguia em meus sonhos. O mesmo peso no ar, e o mesmo cheiro de sangue. Mas eu não estava sonhando agora. Eu estava acordado, era real.
Não sei se eu já estava correndo quando comecei a chorar, ou se logo que senti ela se aproximando, minhas lágrimas escorreram. Mas agora eu já estava longe muitos e muitos metros do acampamento e não tinha mais forças pra chorar ou correr. E pelo visto, estava perdido...

Quando a dor que vinha com o ato de respirar diminuiu, foi que eu percebi que havia deixado tudo no acampamento. Água, comida, roupas, celular. Não me lembrei de chamar a polícia, ou talvez tivesse lembrado e percebido na hora que eles nunca acreditariam em mim. Eu estava ensopado de suor e lágrimas, e por isso mesmo morria de sede. Tinha um rio à uns 3 minutos de caminhada do acampamento, mas a muito tempo eu já tinha certeza que minha corrida tinha sido na direção oposta. Estava sem meu relógio, mas esperava que não demorasse muito para o sol nascer. Ficar naquela escuridão, só iluminado pelo flash de uma lanterna não era muito confortável. E as pilhas provavelmente eram velhas, o que me daria só mais alguns minutos de luz forte.

Foi só quando eu me sentei numa pedra, para descansar, que notei. O cheiro de sangue não havia desaparecido, e ainda estava forte. Tive medo de que a criatura estivesse por perto, mas não sentia a raiva me perseguindo. Olhei ao redor, provavelmente algum animal morto... Mas foi só quando me vi tentando espantar algumas moscas de perto de mim que percebi que o sangue estava em minhas roupas.

O pânico quase tomou conta de mim, e joguei a camisa do pijama no chão, tentando afastar o maldito cheiro. E o pânico enfim tomou conta quando vi aquele desenho estranho em meu peito. Eu nunca tinha visto aquile desenho antes, nem em meu peito, nem em lugar nenhum. Pareciam duas serpentes entrelaçadas dentro de um círculo, carregando algo em suas bocas que eu não pude identificar. Aquilo me assustou, mas não foi nada comparado ao susto que eu tive quando notei que o desenho estava gravado em minha pele com sangue. Eu tentei limpa meu peito, recolhi algumas folhas no chão e esfreguei. Tentei usar a camisa e cuspe, mas nada funcionou.

Minha cabeça estava à mil, e eu não estava entendendo nada. Foi quando o cheiro de sangue foi sobreposto por outro mais forte. Parecia cheiro de algo queimado, de carvão. Senti minha isão ficar turva e meu estômago embrulhou por um breve momento. Foi só então que me veio à memória as aulas de química no colégio e eu me lembrei do quão forte e nauseante era o cheiro do enxofre.

Levei uma das mãos à boca, mas não foi o suficiente, e o vômito veio quente, rápido e vermelho. Sangue. Em meu vômito. Das duas, uma: ou eu estava com um dos órgãos sangrando, ou...

Não! Não posso nem pensar nisso! É impossível! Havia sim algo me perseguindo! Eu não poderia... Não pode ter sido culpa minha! Eu não posso ter matado meus amigos!

Meus pensamentos não duraram muito. O cheiro de enxofre ficava cada vez mais forte, e eu vomitei vermelho mais uma vez. Sangue. E eu não sentia nenhuma dor interna.

Com tudo aquilo acontecendo, eu não notei quando ele chegou. Foi só quando ele falou, que meu sangue gelou e eu quase desmaiei de medo. Ele não devia ter mais do que uns 40 anos. Estava encostado em uma árvore, brincando com um cigarro entre os dedos, e vestido de forma elegante demais pra quem está no meio do mato. Me disse para me acostumar com o cheiro, que daqui pra frente não seria tão fácil.

Eu não pude reagir ou dizer nada. Parte por estar enjoado, parte por estar congelado pela aparição repentina do homem, e parte pelo estranho sentimento de confiança que ele me passava. Tentei perguntar quem ele era, mas de minha boca só saiu mais vômito. E sangue.

Ele esboçou um riso entre seus lábios finos e acendeu o cigarro. Estranho, não vi nenhum isqueiro em suas mãos, ou sequer uma caixa de fósforos. Me disse para ficar calmo, para não tentar lutar contra o vômito, deixar fluir. Pensei em fluir um soco na cara dele, mas eu não gosto de violência. E os vômitos não me deixavam reagir de outra forma. Depois de uma longa tragada, ele sobrou a fumaça em minha cara, dizendo asneiras sobre o meu corpo estar em uma fase de aceitação e mudanças. Me aconselhou a fechar os olhos e sentir a fúria surgindo. Com toda aquela fumaça, eu vômitei mais algumas vezes. Pensei em vomitar em cima daquele terno que ele usava. Sujar um pouco de vermelho uma roupa que parecia tão cara, e tão incompatível ao local que estávamos.
Balancei a cabeça de leve. De onde estavam vindo aqueles pensamentos de raiva e ódio? Eu nunca fui de alimentar sentimentos ruins. Eu não era assim... Será que era isso que ele queria dizer com "deixar a fúria se libertar"?

Ele se abaixou, tirou um frasco do bolso e jogou um líquido azul no chão. Misturou a lama com o dedo, e quando percebeu que eu estava observando, deu uma piscada de olho pra mim. Senti novamente vontade de pular em cima dele e vomitar cada gota de sangue sobre aqueles cabelos bem penteados e sobre aquele cigarro fedorento. E vomitei. Sobre meus pés, mais uma vez. Ele riu e disse que estava quase acabando, que eu poderia ver o Sol nascer para um novo dia, de uma nova vida.

Pegou um pouco de lama do chão, e antes que eu pudesse me mexer, ele a esfregou na minha testa e no queixo. Senti como se aquilo me queimasse, não na pele, mas no osso, ou na alma. O maldito resmungou alguma coisa sobre o ardor do primeiro dia ser o mais forte e o mais rejuvenecedor. Eu vomitei mais uma vez. Mas pelo menos essa parecia ser a última vez.

Ele se virou para o lado, ao mesmo tempo que os primeiros raios de sol surgiam no horizonte. Deu uma enorme tragada no cigarro e o jogou ao chão, estendendo os braços. Meu enjôo e a fúria haviam diminuído. Eu não estava mais em desespero, ou com vontade de encher o cara de porrada. Ao contrário, estava mais calmo do que jamais estive. Algo em mim me impulsionava à ir receber os raios de sol com meu mais novo amigo. Me posicionei ao seu lado e quando os raios de Sol atingiram meu rosto, eu pude sentir uma alegria incontrolável. Parece que meu amigo também a sentia, pois não conseguia esconder um enorme sorriso cheio de dentes brancos e perfeitos. Algo em meu corpo mudava, parecia ficar mais forte, mais rígido. E eu pude sentir cheiros que não havia sentido antes. O sangue e o enxofre haviam dado lugar para o cheiro da natureza novamente. O ar enchia meus pulmões com fragancias espetaculares. E notei que minha mente também mudava. Parecia que meus raciocínios estavam mais rápidos. Podia identificar cheiros que nem nunca havia sentido, e sabia de quão longe eles haviam vindo. Mas a mudança maior foi em meu espírito. Me senti mais jovem, mais disposto. As 3 horas que havia passado correndo na noite anterior não pareciam mais nada. Eu queria correr o mundo inteiro, queria pular, gritar.

O homem no terno diz, sem ao menos olhar para mim:

- "Bem vindo ao primeiro dia do resto de sua vida, garoto. Vão vir atrás de você. Vão te chamar de monstro, de demônio. Vão querer te destruir, te mostrarão cruzes e símbolos na esperança que você recue. E nada vai funcionar, e nada disso vai importar. Porque você vai querer estar vivo para ver cada vez mais nasceres do Sol iguais à este. Você agora é um Infrit, e eu vou te ensinar tudo que você precisa saber sobre a nossa vida."