Projeto II - Consequência

Ele abriu a caixa e seus lábios não puderam conter um sorriso. Por dentro ele sentia um misto de alegria e medo, pois por mais que desejasse aquele momento, nunca imaginou que de fato o conseguiria. O sorriso nos lábios afrouxou por um momento, e três lágrimas pesadas e salgadas escorreram pelo seu rosto, até tocarem o chão. O calor que sentia em seu peito diversar vezes entrava em conflito com o frio que lhe arrepiava a espinha. Conseguira o que queria, finalmente. Mas à que preço?

Caminhou muitos metros ao longo do pier. Estava amanhecendo, e os primeiros raios de Sol sempre lhe traziam bons sentimentos. Mas dessa vez ele sabia que, por mais forte que o Sol brilhasse e por mais contente que ele estivesse, não havia porquê ter esperanças. Parou de frente para o mar e pensou na noite que passara, e nos atos que acabara de cometer. Muitos não o perdoariam por isso, e com toda a razão.

Abriu a caixa mais uma vez e viu o brilho prateado do conteúdo iluminar sua face. Queria se certificar que estava tudo intácto e pronto para a transferência. Dentro da caixa a pequena esfera de luz flutuava em um estado de inércia, como se esperasse que seu novo dono a aceitasse. Ele fechou a caixa assim que sentiu um novo arrepio lhe correr pela espinha. Respirou fundo e sentiu um cheiro agridoce no ar. Se era sua missão conseguir o conteúdo da caixa, era a função de outra pessoa entregá-lo ao seu destino final. E essa pessoa acabara de chegar.

-
Eu consegui. Foi difícil, mas eu consegui... Está aqui comig...
- Eu sei que você conseguiu
. – disse uma voz áspera, que se aproximava do pier. – Suas ações estão sendo comentadas em todos os lugares. Tem certeza que ninguém te seguiu?
- Não. Provavelmente eles já sabem onde eu estou, e estão se preparando para virem me buscar. Mas não importa mais, eu já tenho o que você me pediu. É melhor você ir andando. Logo eles estarão aqui.
- Você é maluco, sabia disso? – a voz áspera caminha até o fim do pier e pega a caixa. – Tem certeza que não precisa de ajuda? Eu tenho alguns contatos que podem fazer você sumir do mundo, se quiser.
- Não vai ser preciso. Eu já aceitei o meu destino... – ele se abaixa e pega um pouco da areia que o vento maritmo jogou sobre a madeira. – Só me prometa que você vai fazer a sua parte direito.
- Ei! Nós temos um contrato, não temos? – a voz começa a ficar mais distante. – Você fez a sua parte, e agora eu sou obrigado à fazer a minha. Eles chegaram. Faça uma boa viagem, irmão.
- Eu não sou seu irmão! – ele gritou em vão. A voz já havia ido embora, carregando a caixa consigo.

Ele não teve muito tempo para se acalmar da raiva causada pela voz. Quando virou suas costas para o mar, já estava cercado por homens de aparência divina. Vestidos em roupas celestialmente brancas, todos apresentavam feições jovens e puras. Mas ele sabia que isso não dizia nada. Aquele pequeno exército de não mais do que meia dúzia era treinado para enfrentar as mais terríveis bestas e criaturas que nenhum homem comum pode imaginar. Mas ele não era um homem comum. Assim como aqueles que o cercavam agora, ele também era um Celestial. O problema é que ele não merecia mais ser chamado assim. Não depois da noite que se passara e dos atos que cometera.

- Anjo Ethaniel, no começo da noite anterior o Hellion foi invadido. Duas almas desgarradas foram libertas sem o consentimento do Supremo, cinco Querubins foram mortos e um artefato de máxima importância foi roubado de seu local de descanso. – o que falou apresentava uma voz suave porém firme. Seu rosto era limpo e seus olhos eram de um azul tão claro quanto o céu atrás dele. Qualquer poderia sentir a raiva e o desapontamento presente naquele olhar. – Você sabe alguma coisa sobre o ocorrido?
- As almas libertas não são importantes, pois vocês já as recuperaram. – ele abaixou o olhar e sentiu sua garganta queimar, enquanto um peso imenso era posto sobre seu corpo. – O artefato roubado foi a Pedra das Almas.
- Anjo Ethaniel, durante toda a noite o Supremo entrou em debate para descobrir quem seria o responsável por tal ato, e o que o levaria a faze-lo. Chegou-se ao veredito que você foi o responsável por tais atos. Como você se declara?
- Culpado, senhor. E por favor, não me chame mais de Anjo... Eu não sou mais merecedor.
- Pois bem, Ethaniel... Por ordens do Supremo, você é considerado culpado pelo auxílio na fuga de almas desgarradas, pelo roubo de um artefato divino, e pelo assassinato direto de cinco Querubins, tudo isso dentro do território do Hellion. Sua sentença é a morte de seu corpo físico e a detruição total de sua sentelha divina. Por favor, entregue seu brasão agora!

Ele levou a mão dentro da jaqueta e sentiu um rasgo profundo em sua alma. Não soube compreender na hora que aquilo era a fagulha divina deixando sua alma. Muito menos entendeu que o forte ardor que sentiu em suas costas eram suas asas sendo queimadas e se tornando negras e esqueléticas. A dor era tanta que não conseguiu se manter de pé e se pôs de joelhos, de frente ao exército. Quando retirou a mão de dentro da jaqueta, estava segurando um pequeno pingente de prata que foi logo lhe tomado por um dos agentes à sua frente. Outra lágrima escorreu por seu rosto.

- Ethaniel, posso ao menos saber o motivo de tanta insensatez? – perguntou aquele que estava em comando do grupo celestial, e que já havia falado antes.
- Você é um Tronos, Nargiel. Sua sentelha pulsa em busca pela caça, pelo mantimento da ordem. Sua função é destruír e corrigir. – ele levou as mão ao chão, como se tentasse sustentar seu corpo perante o imenso peso que agora desabava sobre suas costas. Seus olhos eram duas lagoas de lágrimas, e sua fala já era mais choro do que palavras. – Você não é um Anjo, Nargiel. Não foi criado para compreender, para proteger, ajudar ou amar. Eu poderia passar a eternidade lhe explicando do porquê de meus atos esta noite. Te falar de como é bom amar e se sentir amado. De como é glorificante se entregar à uma pessoa por inteiro. – o peso sobre seus ombros era quase insuportável, e ele já não compreendia se chorava de dor que sentia em seu corpo físico, ou pelo imenso vazio que sentia dentro de sua alma. – Diabos, eu poderia até te explicar como é ter essa pessoa amada retirada de você por meros caprichos divinos. Eu poderia até mesmo utilizar das palavras mais duras e até utilizar algumas outras proibidas para tentar fazer você entender, Nargiel. – sua voz já se mistura com soluços e lágrimas. – Mas você não entenderia. Você NUNCA entenderia. Nem você, nem ninguém... E é por isso que eu fiz o que fiz. Para ter certeza que, mesmo eu desaparecendo da Existência, aquilo que eu senti não poderá jamais se apagar. É por isso que eu abraço meu destino, Nargiel. Pos com a Pedra das Almas, eu lavo a minha amada de qualquer pecado, e vocês não poderão NUNCA, JAMAIS, encostar um dedo sequer nela! – seus olhos encontram o do líder do exército. Tamanha fúria em seus olhar só é comparada com a imensa paz que os guerreiros podem sentir emanando de sua essência.

Ele abaixou novamente a cabeça, e esperou pelo seu destino final. Talvez, se ele tivesse erguido os olhos, ainda teria visto a cara de espanto ou o nojo de desaprovação que alguns guerreiros apresentavam em seus olhares. Mas ele não veria o olhar de piedade e carinho com que o líder do exército lhe encarava. Não veria pois aquele último olhar seria encoberto por uma fonte de luz intensa que emanava da mão do mesmo líder. E a última coisa que Ethaniel veria seria um imenso raio de luz branca vindo em sua direção. Antes de sentir sua sentelha divina ser reduzida à nada, ele ainda pode buscar por milhares de quilomêtros, um conforto ao sentir que um coração voltara à bater. E suas consciência viveria em paz, ao saber que seu amor vivia novamente. Mas com sua sentelha agora destruída, sua existência era parte do nada e do vazio. Ele nunca mais voltaria a viver novamente.

17 julho, 2008

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