Projeto III - A Balada de Taloriel

Taloriel terminou de recitar as últimas palavras do encantamento e abriu os olhos. Instantaneamente ele pôde sentir o laço mágico que o ligava à sua arma ficando rapidamente mais forte, assim como sentia o ar da manhã preenchendo seus pulmões com os cheiros da floresta. O jovem respirou fundo por uma segunda vez, e deixou que seus sentidos aguçados de eladrin trabalhassem um pouco mais. Com sua audição aguçada ele pôde ouvir barulhos de um acampamento sendo desmontado, à pouco mais de 50 metros de distância em direção ao norte. Por uma terceira vez ele respirou fundo e resou uma pequena prece ao Deus das Caçadas, para que aquele fosse o grupo de bugbears que ele estivera procurando durante toda a semana.

Ele sentiu a armadura de couro apertar, enquanto ele tentava ao máximo se manter em silêncio, para se aproximar do acampamento sem ser notado. A arte de se locomover sem chamar a atenção não era uma especialidade que ele precisasse dominar em seus dias de guarda real, e agora ele sentia a falta de um treinamento mais furtivo. Durante toda a sua vida, Taloriel foi treinado por diversos mestres para se tornar o guardião pessoal da princesa Pâmora. Quando completou quinze anos e teve seu treinamento completado, lhe foi entregue Kmertz, a espada forjada com sangue de fada e metal retirado das escamas de um dragão. A mesma arma que carrega até hoje, que aprendeu a criar uma conexão mágica, de onde retira energia para a execução de magia e poderes que já acabaram com a vida de diversos inimigos. Mas que não foi o suficiente para proteger a princesa Pâmora naquela tarde de outono...

Taloriel se aproximou o máximo que sentia ser seguro do acampamento, sem despertar a atenção dos bugbears. Escondido entre os arbustos altos e a sombras de árvores densas e pouco espaçadas entre si, ele agradeceu por estar usando um manto de camuflagem por sobre as roupas de cores azul e dourada, que não só o exporia aos bugbears mais facilmente, como o identificaria como um servo da corte de Lamar. Da distância que ele estava agora, o acampamento era visível e identificável facilmente. Somente três cabanas, sendo que uma maior e mais adornada com certeza seria do lider do grupo. Das outras duas, ele pode verificar com o tempo, uma parecia servir de dormitório para dois outros bugbears, e a terceira ele só podia cogitar entre uma emprovisada sala de tesouros, ou uma rústica prisão. Do pouco que havia aprendido da linguagem falada pelos bugbears nos últimos meses, ele só pôde destacar algumas palavras como grande garra, acordo, entrega e prisioneiros. Prisioneiros, porém, era a palavra que ele esperava ouvir. Ele não conseguiu conter um leve sorriso em seus lábios, ao ver um dos bugbears sair da tenda maior com um jovem humano vestindo roupas sacerdotais, tão ensanguentadas que não o possibilitaram identificar à qual divindade o rapaz servia. O rosto extremamente machucado denunciava que o sangue pertencera ao próprio humano.

Porém, foi quando ele viu o segundo bugbear arrastando o corpo sem vida de uma jovem meia-elfa até o meio do acampamento, que seus pensamentos voaram para alguns anos atrás, quando ele e a princesa Pâmora estavam caminhando por um dos bosques no extremo da divisa oeste do reino de Lamar. Apesar de ter sido treinado para fazer parte da guarda pessoal da princesa, os jovens se apaixonaram no momento em que lhes foram apresentados um ao outro. Gozando de seus privilégios como única princesa, e herdeira do trono, Pâmdora conseguiu fazer com que Taloriel se tornasse mais do que um simples guarda. Aos olhos mais desatentos da corte, o jovem espadachim era quase como um conselheiro pessoal da princesa, um acompanhante fiel, pronto para realizar os desejos e carpichos de sua realeza. Para a família real, porém, os jovens eram amantes e companheiros. Não foi difícil para o rei de Lamar concordar com aqueele romance, assim que viu os olhos apaixonados de sua filha recaírem sobre o amado. Com um pouco de pesar, mas bastante confiante que o futuro de seu reino estaria à salvo nas mãos de tão nobre e corajoso rapaz, o rei e a rainha aprovaram o relacionamento do jovem casal, com somente uma ressalva. Ambos deveriam atingir a idade de vinte e cinco anos, antes que qualquer preparação de casamento ou palavra oficial fosse dado sobre os dois. Eram as tradições do reino, e apesar do povo desconfiar que aquele acompanhante era mais do que um grande amigo da princesa, eles confiavam e esperavam ansiosos por um pronunciamento oficial da família real, no dia em que a princesa completasse sua maioridade.

O cheiro de carne queimada invadiu as narinas de Taloriel, e enquanto sua mente ainda estava recheada de memória do passado, ele não pôde ver o bugbear jogando o corpo da jovem garota no meio da fogueira. Foi então que ele ouviu um barulho ao seu lado direito, e só percebeu a flecha apontada para sua cabeça quando já era tarde demais. Havia mais um bugbear no acampamento. Não três, mas quatro. Um estava servindo de guarda e vasculhava a mata ao redor do acampamento quando notou o jovem eladrin abaixado entre a grama alta.

Jogado no chão duro de terra seca dentro da terceira tenda, ele conseguiu ver de relance o clérigo humano entoando uma resa em um tom de voz quase inaudível. Taloriel teve a impressão de que a fé nas palavras do rapaz era ainda mais fraca do que a força com que ele reclamava os versos da resa. O bugbear que o amarrara teve o cuidado de retirar sua espada e jogou-a sobre uma mesa de madeira no canto da tenda, perto da entrada. Enquanto amarrava os braços do eladrin para trás, num pequeno poste, forçando-o a ficar de joelhos, o bugbear grunhiu algo para o humano. Com sua fraca compreensão, Taloriel só distinguiu as palavras falso deus, inútil e abandonado. Ele conseguiu imaginar qual o sentido total da frase, e se lamentou com o poder que aquelas palavras pareciam ter atingido o rapaz, que agora parara de resar e encarava o bugbear com um olhar de pavor em seu rosto. Antes de sair da tenda, o algoz teve a delicadeza de lançar um forte soco na cara do jovem clérigo, que não fez forçar para se levantar ao atingir o chão com rosto.

Taloriel olhou para o lado, em busca de algo que pudesse usar para escapar dali, e se contentou em perceber que ele e o humano pareciam ser os únicos prisioneiros vivos àquela altura do dia. Ajoelhado no chão, ele não podia ver muito bem por sobre a mesa de canto, mas a quantidade de armas e armaduras parecia ser mais do que o pequeno grupo de bugbears precisariam. Com certeza aquele era o tesouro de vários outros aventureiros que encontraram a morte nas mãos dos saqueadores.

- Ei, você! – Taloriel tentou chamar a atenção do rapaz ensanguentado caído a poucos metros de distância. – Você é um clérigo, não é? Por que você não tenta orar por uma maldição sobre esses bugbears, ou algo assim? – O rapaz pareceu não dar ouvidos, e o jovem eladrin já estava pensando em desistir de ter uma resposta, quando conseguiu distinguir palavras sussurradas entre soluços e lágrimas.

- Meu deus me abandonou, elfo... Eu fui fraco em batalha, e ele me abandonou... Não há nada mais que eu posso fazer, não sem antes pagar uma penitência e pedir o perdão do Deus da Guerra.

Taloriel não possuia muito conhecimento sobre rituais de fé, ou como o clericato agia, mas ele já ouvira falar do Deus da Guerra antes. E para ter perdido seus poderes clericais, o jovem humano deve ter ou se rendido em uma batalha, ou se recusado à lutar. Em ambos os casos, ele não pretendia ficar preso naquela tenda por muito mais tempo. Ele tinah perguntas à fazer ao líder do grupo, e pelos barulhos que vinham do lado de fora, os bugbears não planejavam em ficar por ali por muito mais tempo.

- Olha, garoto... Não me importa se você tem uma dívida com seu deus ou não. Eu não estou planejando ficar para essa festinha bugbear até o anoitecer, então eu gostaria da sua colaboração. – Taloriel conseguiu se concentrar por alguns segundos e sentiu o laço com sua espada fortificado pelo ritual que fizera pela manhã. Foi necessário menos do que a mentalização de ter a arma em suas mãos, e a espada se teletransportou magicamente para elas. Com um movimento rápido e preciso, ele cortou as cordas e se levantou. Ele olhou para o humano, e não parecia que ele fosse de muita ajuda no momento. Fosse a fé abalada, ou a surra que havia tomado dos bugbears, o clérigo parecia não possuir a força de vontade necessária para se levantar. Taloriel se abaixou e rompeu as cordas que o amarravam. – Olha, se você não vai ajudar... Tente pelo menos não ficar no caminho, está bem? – Se dirigindo à saída da tenda, ele ainda teve tempo de sussurrar para o humano: - E eu sou um eladrin, não um elfo... Saiba diferenciar melhor as pessoas no futuro!

Do lado de fora da tenda, o barulho havia cessado. Arriscando uma espiada, Taloriel pôde ver os bugbears entrando na tenda principal. – Ótimo, se vocês se mantiverem juntos, será ainda mais fácil... – Ele deu alguns passos furtivos em direção à entrada da tenda maior e pôde ver os quatro bugbears se aglomerando em volta de uma mesa baixa, feita de madeira. Pareciam discutir qual rota tomar, pois olhavam para um mapa. – Perfeito! – e ele novamente não pôde conter um leve sorriso nos lábios.

Os quatro bugbears não tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo. Em um segundo estavam discutindo a presença de um enclave druida pelo caminho que iriam passar, e no segundo seguinte, o eladrin que acabaram de capturar estava se materializando no ar, à frente deles. Taloriel não perdeu tempo, e enquanto caia sobre a mesa, lançou sua espada ao chão, invocando uma das magias que a conexão com sua espada lhe proporcionavam. Em frações de milésimos, do ponto de impacto da lâmina no chão, uma onda circular de magia explodiu, empurrando os bugbears para trás, fazendo com que um deles caísse de mau jeito e deslocasse o pescoço. – Um a menos. – pensou Taloriel, enquanto retirava a lâmina do chão e se corria em direção à outro bugbear, que ainda estava meio desnorteado pelo ataque anterior. Não foi preciso muita força, mas a precisão do eladrin fez com que a lâmina da espada atravessasse a fina armadura de couro do bugbear e atingisse um ponto vital em seu peito. Com mais um desafiante caído, restavam agora o líder, que Taloriel ainda não havia conseguido analisar, e o bugbear que o havia descoberto no meio da floresta. E foi deste último que veio o disparo da flecha que atingiu o ombro do eladrin. Mal ele teve tempo de se virar, para encarar o agressor, e sentiu um imenso impacto lhe atingir as costas, e lhe jogou para fora da tenda.

Um gosto de sangue atingiu sua boca, enquanto Taloriel se levantava e assumia uma posição de defesa contra os agressores, que agora saíam de dentro da tenda. Pela primeira vez Taloriel pôde ver o líder com detalhes, e percebeu que o tamanho avantajado e o imenso martelo de guerra que ele carregava com somente uma mão deveriam ter sido suficientes para amedrontar o jovem clérigo. Repassando rapidamente em sua mente por todas as magias que conhecia, o jovem eladrin se lembrou de um truque que aprendera com um de seus mestres. Se funcionasse, o jovem seria capaz de atingir ambos os adversários com somente um ataque. O problema estava no fato de que para o truque funcionar, ele precisaria lançar a arma em direção ao seus inimigos. Ele recitou rapidamente as breves palavras e desenhou com a mente a trajetória que a arma deveria fazer para atingir ambos os alvos. Sentindo a forte conexão que ele possuia com sua arma, ele lançou a espada, que começou a trajetória de semi-círculo, decapitando o bugbear arqueiro. Quando se aproximou do líder, porém, a arma foi impedida de completar a trajetória, pela defesa que o imenso martelo de guerra proporcionou ao líder bugbear. A espada caiu no chão, com o fim do efeito da magia. Antes que Taloriel pudesse invocar sua arma devolta à suas mãos, o líder bugbear investiu em direção ao eladrin, correndo com o martelo erguido, pronto para esmagar o seu crânio.

Como último recurso, Taloriel gardava uma pequena magia que não necessitava de sua arma para ser realizada. Um pequeno globo de luz, que mais servia para distrair seus inimigos do que para ferí-los. Mas normalmente era o tempo o suficiente para que Taloriel pudesse convocar Kmertz de volta para suas mãos. Ele preparou as mãos em forma de círculo, pronto para lançar a magia, quando uma ponta metálica brotou no meio dos olhos do imenso bugbear, fazendo-os perder o equilíbrio e cair morto à centímetros de distância do eladrin. Quando olhou para o lado, ele viu o jovem humano segurando um arco de estranhos entalhes, com uma cor vermelha intensa.

- Eu não pretendia ficar no caminho, eladrin. Mas também não pretendia não fazer nada...

Taloriel pensou em rir, mas se lembrou que com o líder do grupo morto, as respostas que ele procurava demorariam mais ainda à aparecer. Pegou sua espada e a guardou de volta na bainha em sua cintura. Talvez o mapa indicasse o local para que os bugbears estivessem indo... E talvez lá ele encontrasse alguém que lhe pudesse dizer o paradeiro de um certo druida. E quem sabe esse druida não pudesse ajudá-lo a encontrar a princesa que estava desaparecida... A princesa que não só precisava voltar para seu reino sã e salva, mas que precisava estar viva e inteira, para o bem da própria sanidade do eladrin. Para o bem do seu próprio coração, que não o perdoaria jamais, se algo de ruim acontecesse com o objeto de seu amor.

15 outubro, 2009

0 Comments: